Responder
Aires Alves para ondaslivrescas
mostrar detalhes 19 jun (4 dias atrás)
Especial José Saramago, compilado por Aires Alves, a partir da Secção Destaque do Jornal Público de 19 de Junho de 2010
Morreu o escritor que inventou BlimundaSaramago
Foi serralheiro e funcionário público. Comunista. Amado e detestado. Começou a viver da escrita depois dos 50 anos. Conheceu Pilar
já sexagenário. Recebeu o Nobel - o único dado à língua portuguesa - aos 76 anos. Partiu ontem. Sem "nenhuma esperança". Por
Adelino Gome
José Saramago, 87 anos, único escritor de língua portuguesa a quem foi atribuído o Nobel da Literatura, morreu ontem, ao início da
tarde, na sua casa da ilha de Lanzarote, onde vivia com a mulher, Pilar del Rio, desde que se auto-exilara, em 1993, depois de o
Governo português riscar o seu nome da lista dos candidatos ao Prémio Literário Europeu.
Visivelmente fragilizado desde o Verão de 2007, devido a doença cancerosa, morreu na sequência de "múltipla falha orgânica",
segundo a Fundação José Saramago.
O corpo chega hoje às 12h30 ao Aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, e é cremado domingo. O Governo decretou dois dias de luto
nacional. Num documentário de Alberto Serra, estreado em fins de 2008, Saramago exprimira o desejo de que as suas cinzas fossem
colocadas, sem qualquer inscrição, debaixo de uma pedra larga do jardim da casa de Lanzarote. Terá mudado posteriormente este
desejo, disse o administrador da Fundação Saramago, José Sucena, ao PÚBLICO.
Nas entrevistas que deu nos anos pós-Nobel, disse que sairia "desta merda de mundo" sem "nenhuma es- perança" e profundamente
dorido por saber que não terá "outra vida". Mas com a satisfação de que "disse o que queria, como queria, quando queria", ainda que
"com algumas in- compreensões" de parte dos seus contemporâneos.
Não partiu, contudo, apenas ele. "Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que fui",
disse em 2006, referindo-se aos primeiros 14 anos de vida, profundamente ligados à aldeia natal, Azinhaga do Ribatejo.
Derradeira provocação
O seu último romance publicado em vida, Caim (2009), foi escrito "numa espécie de transe", em quatro meses.
Além da personagem b? blica que lhe dá título, tem como protagonistas nada menos do que a humanidade e o próprio Deus. A ideia
surgira-lhe há muitos anos. As circunstâncias (ou a sua vontade?) tornaram-no no seu último livro. Como se de uma derradeira
provocação se tratasse: "Que Deus mande a Abraão matar o seu filho Isaac para provar a sua fé, só isto deveria apagar da nossa
cabeça a ideia de Deus" (PÚBLICO de 2/9/2009).
Apesar de visivelmente fragilizado pela doença, desde 2007, publicará ainda A Viagem do Elefante, O Caderno e O Caderno II - estes
últimos constituídos por textos escritos até Novembro de 2009 no seu blogue, blog.josesaramago.org (dois milhões de visitas nos
primeiros nove meses).
Em contraste com a recepção fria aos oito livros publicados depois do Nobel da Literatura, em 1998, o seu anterior livro, A Viagem
do Elefante (2008), foi bem acolhido pela crítica portuguesa.
A doença interrompeu a escrita desta obra cerca da página 40, mas a sua capacidade criativa pareceu redobrar nos anos que se
seguiram, ainda que o corpo passasse a exibir, dela, marcas profundas.
Individual e universal
José Saramago publicou 46 livros (16 romances, além de poesia, teatro, contos, crónicas, viagem, memória e diários), 41 dos quais
na Editorial Caminho, comprada pelo Grupo Le-ya em 2007. Foi autor ainda dos libretos de três óperas.
A sua obra está traduzida em 42 línguas de 53 países.
Não existem números seguros, mas dados apurados pelo PÚBLICO junto da editora, com base apenas nalguns países e regiões, apontam
para próximo de 10 milhões de exemplares vendidos: em Portugal (mais de três milhões), no Brasil (mais de 1,4 milhões), em Espanha
e América Latina (mais de quatro milhões) e nos EUA (mais de 1,4 milhões). Entre as personagens mais fortes que criou, avulta,
impressiva e encantatória, Blimunda, a dos poderes mágicos, imortalizada em O Memorial do Convento. O escritor e mulher deram o seu
nome à residência que mantinham em Lisboa, num bairro discreto colado à Praça de Londres.
"Voz original, inconfundível" (Clara Ferreira Alves); apreciado em África como uma referência dos escritores que neste continente
escrevem em português (Mia Couto elogia nesta edição o seu "empenho" em lhes dar "visibilidade") e no Brasil como um autor em que
os leitores se reconhecem como reconhecem em Vieira, Eça ou Pessoa (Eduardo Prado Coelho), o crítico norte-americano Harold Bloom
considerou-o, em 2003, "o mais talentoso romancista vivo". Eduardo Lourenço chama-lhe, nesta edição, "ícone cultural português".
No "núcleo duro" da sua obra, este- ve "sempre a preocupação com o ser humano, seja ele português ou universal", afirmando-se como
"um processo de constante auto-superação estética, temática e mesmo, em certos aspectos, ideológica", sustenta o académico Carlos
Reis.
A acrescentar a estas marcas ao mesmo tempo individualizadoras e universalizadoras, eram-lhe apontadas como características
singulares a escrita sem pontuação e sem maiúsculas nem discurso directo regulares; o imaginário, dominado pelo realismo
fantástico; as personagens (além de Blimunda, Madalena, a quem atribui uma relação com Jesus, é também apaixonante); uma ironia
permanente e acerada; e as histórias irrecusáveis. A que acrescentaremos, como motivo de fascínio junto de milhões de leitores, a
forma como intervinha publicamente na defesa de grandes causas. Dos Sem Terra e do zapatismo ao movimento antiglobalização, à
preservação do ambiente, à denúncia da guerra no Iraque e, mais recentemente, aos ataques frontais a Berlusconi, o
primeiro-ministro italiano a quem chamava "a coisa".
Amado e detestado
O ministro da Cultura de Espanha, César António Molina, mostrou quanto o Estado espanhol apreciava a opção de Saramago por
Lanzarote, ao referir "a sorte de podermos [os espanhóis] partilhar a existência do escritor", na inauguração da exposição sobre a
sua obra, em Novembro de 2007, na Fundação César Manrique, em Lanzarote. Molina não hesitou em dizer algo que nenhum homólogo seu
de Portugal - país onde o romancista continuava a pagar impostos, mas sobre cujo futuro como nação independente expressava fortes
dúvidas - se atrevera até então a dizer assim, em público: "Muitos de nós somos o que somos porque encontrámos no meio do caminho a
sua obra e vida."
Numa declaração que soa hoje como epitáfio, Molina lembrou que o escritor "nunca se esqueceu de ajudar os mais desamparados e os
que não têm voz e que através da sua obra ganharam um lugar".
Antes e após a atribuição do Nobel da Literatura, em 1998, Saramago foi distinguido com muitas dezenas de doutoramentos honoris
causa e proferiu centenas de conferências que atraíam multidões, especialmente nos países latino-americanos.
As suas declarações, tal como os livros, levantavam, não raras vezes, ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o
seu estilo, quer as suas posições políticas e religiosas.
O jornal oficial do Vaticano, L"Os- servatore Romano, apelidou-o, na altura do Nobel, de "comunista inveterado". Saramago
retribuiu, considerando que não se podia ter confiança "nessa gente". E que a Igreja Católica se confundiu "muitas vezes -
demasiadas vezes - com uma associação de criminosos".
Não hesitou em definir-se uma vez, na Antena 2, como um "comunista hormonal" ("da mesma maneira que a barba me cresce, há uma
hormona que fez de mim isto"). Tal não o impediu, porém, de preservar a autonomia de pensamento e uma liberdade crítica que, não
raras vezes, o fizeram criticar figuras da iconografia comunista, como Fidel Castro, discordar de posições oficiais do PCP, e mesmo
apoiar publicamente candidatos do PS (Mário Soares, nas presidenciais de 2005, e António Costa, nas autárquicas de 2009).
Muitos dos seus detractores encontravam-se em Portugal, reconhecia Saramago. "As pessoas param-me na rua. O que há é um sector
oficial que realmente não tem muita simpatia por mim. E tem-no manifestado, ainda que agora já não tanto [...]. Ninguém é profeta
na sua terra, mas também eu não quero ser isso. Provavelmente terá a ver com o público. E também com o acolhimento dos meios de
comunicação", explicou ao PÚBLICO, em 2006.
Infância rural
José de Sousa Saramago nasceu em 16 de Novembro (18, diz o registo oficial, erradamente) de 1922, em Azinhaga do Ribatejo, aldeia
próxima da confluência do Almonda com o Tejo.
Filho e neto de camponeses sem terra, aos dois anos trocou a aldeia pela capital, acompanhando o pai, que se tornara guarda da PSP.
Viria a revelar, décadas mais tarde, no seu último livro, As Pequenas Memórias (2006), que continuou ligado até muito tarde à terra
natal. Ali - "uma criança no meio do mundo olhando em redor e dizendo: "Estou aqui"" - sente que se construiu. Por influência
inapagada dos avós maternos, com quem, já a residir em Lisboa, passou férias até ao fim da adolescência.
As origens humildes afastam-no do Liceu Gil Vicente, onde permaneceu dois anos, e conduzem-no para a Escola Industrial de Afonso
Domingues, onde obtém 15 valores a Serralharia Mecânica, 15 a Francês e 11 a Português.
Quedam-se por aqui as suas habilitações literárias. Tudo o mais - e foi mais do que qualquer outro escritor português do seu tempo,
em termos de honrarias literárias e de reconhecimento público mundial - ganhou-o numa aprendizagem solitária, longa e persistente
que o levou (observações de Gabriel Garcia Márquez no citado documentário televisivo) a começar a escrever quando os outros
costumam terminar e a continuar a escrever na velhice como se tivesse 18 anos.
Depois de um primeiro emprego como serralheiro mecânico, nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa, passa a auxiliar de escrita,
desenhador, funcionário da Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria da Cerâmica (de que será afastado em 1949, por apoiar
o candidato da oposição a Salazar, Norton de Matos) e da Caixa de Previdência do Pessoal da Previdente.
Torna-se colaborador de produção e, por fim, editor literário da Editorial Estúdios Cor. Traduz 48 livros entre 1955 e 1981, ano a
partir do qual se dedicará a tempo inteiro à escrita literária.
"Esquecimento" do PCP
Jornalista profissional desde 1972, assumiu no Verão Quente de 1975 as funções de director adjunto do Diário de Notícias. Veio a
ficar ligado, no exercício deste cargo, ao processo de saneamento de 30 jornalistas, que haviam denunciado nas páginas do jornal a
falta de pluralismo do matutino. O episódio imprimiu ao seu perfil uma marca de intolerância ideológica que contrasta com a tocante
humanidade das grandes personagens da sua obra literária.
A derrota da linha que apoiava sonoramente no Diário de Notícias, em 25 de Novembro, deixou-o no desemprego. Pouco depois, ao
decidir procurar trabalho, constata que o PCP (a que aderira em 1969, a convite do director da Portugália, Augusto da Costa Dias)
não o convidara para um novo projecto jornalístico já em marcha, O Diário, como fizera "a todos os outros jornalistas" que tinham
saído daquele jornal.
"Na altura não gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço", comentou um dia, lembrando que aquilo em que se tornou deve
ter começado por alturas desses últimos dias de Novembro em que testemunhou a derrota do projecto de "construção do socialismo" de
que o DN era "um instrumento".
Até 1975, explicou, tinha livros mas não se via como um escritor. Decide ir para o Alentejo, aí vivendo de traduções, durante
alguns anos. Acolhido em casa por camponeses do Lavre, abre-se-lhe a porta para uma segunda vida, a da escrita literária.
Publica em 1977 o romance Manual de Pintura e Caligrafia, na Moraes Editores. Dois anos depois, A Noite, primeira de uma série de
peças de teatro que inclui Que Farei com Este Livro? (1980), A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987) e In Nomine Dei (1993).
Em 1980, o romance Levantado do Chão, em que se liberta das regras da pontuação e das maiúsculas, substituídas por um fluir
narrativo torrencial típico do discurso oral, define-lhe um estilo literário a que o Prémio Cidade de Lisboa dá maior repercussão.
Percorre o país, numa encomenda do Círculo de Leitores, de que resulta o precioso Viagem a Portugal, que Pilar del Rio considera "o
livro perfeito", apesar de "mal amado pelos media portugueses".
Reconhecimento e exílio
Memorial do Convento, em 1982, confirma a sua forma original de narrar histórias, numa prosa "misteriosa, alusiva, poética"
(Luciana Stegagno Pichio) em que se misturam erudição clássica e sabedoria popular.
O livro marca a consagração definitiva do autor no país e abre-lhe, aos 60 anos de idade, as portas do reconhecimento
internacional. "É muito melhor do que O Nome da Rosa, de Umberto Eco", chega a escrever um crítico no jornal italiano La Stampa.
Será adaptado a ópera e ao teatro, em Portugal e no estrangeiro. O autor recusa uma oferta de Hollywood para que seja posto em
filme. E outra do Brasil para passar a telenovela.
Segue-se em 1986 O Ano da Morte de Ricardo Reis - para muitos dos seus leitores (há quem diga que também para ele) o seu melhor
livro.
Seis anos e três romances depois (Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa e Evangelho Segundo Jesus Cristo), já famoso em
Portugal e na Europa, onde multiplica edições e prémios, vê o seu nome riscado de uma lista de obras candidatas ao Prémio Literário
Europeu. Decisão do subsecretário de Estado da Cultura Sousa Lara. O Evangelho atacava princípios que tinham a ver "com o
património religioso dos portugueses".
O acto censório leva-o a um processo de ruptura com o Governo de então, chefiado por Cavaco Silva. Fixa residência na ilha
espanhola de Lanzarote, num processo de "exílio literário" que manterá até à morte, apesar de nos últimos anos ter adquirido uma
pequena vivenda em Lisboa, onde se deslocava com frequência.
"Maldição" do Nobel
O Ensaio sobre a Cegueira (1995) ter-lhe-á valido o Prémio Nobel de Literatura de 1998, tal a boa impressão que causou na Academia
Sueca. Foi isso pelo menos o que um seu membro, o poeta e romancista Kjell Espmark, lhe revelou e Saramago contou anos mais tarde,
no blogue que começou a escrever no Verão de 2008.
O anúncio do mais alto galardão literário do mundo foi feito, como ha- bitualmente, em 8 de Outubro. O Nobel distinguira pela
primeira vez um autor de língua portuguesa que "com parábolas sustentadas por imaginação, compaixão e ironia, continuamente nos
permite captar uma realidade fugidia".
Na noite de 7de Dezembro seguin- te, em cerimónia televisionada, apre-senta-se ao Comité Nobel e ao mundo recuando a memória até
aos tempos de infância: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. (...) Chamavam-se Jerónimo
Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro."
Os romances que se seguem ao mais famoso prémio literário do mundo - A Caverna (2000), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a
Lucidez (2004) - são recebidos com reservas por parte da crítica portuguesa. Fala-se em "maldição do Nobel". A série de diários
Cadernos de Lanzarote é especialmente causticada pela exibição de prémios, de distinções, de ditirambos ao autor. Interrompe-a no
quinto volume, publicado pouco antes da cerimónia de entrega do Nobel.
Publicado em finais de 2005, As Intermitências da Morte constitui um comovente hino testamentário (um violoncelista seduz a
morte-mulher, para quem interpreta uma suite de Bach) ao amor e à música, isto é, à vida humana.
Escrita "com larguíssimos intervalos" e longamente prometida sob um título que não veio a vingar (O Livro das Tentações), a
autobiografia As Pequenas Memórias (1996) debruça-se sobre a infância e a adolescência, na Azinhaga e em Lisboa.
Na altura, disse-se tentado a fechar o círculo. Considerava que esgotara, de algum modo, os temas, embora, premonitório, admitisse
escrever ainda "mais um livro ou dois".
O factor Pilar
José Saramago foi casado com a pintora, gravadora e escultora Ilda Reis, já falecida, de quem tinha uma filha, Violante. Viveu 16
anos com a escritora Isabel da Nóbrega (Prémio Castelo Castelo-Branco, 1965), com quem formou, segundo Fernando Dacosta, "um par
fiel, glamouroso", nos meios intelectuais lisboetas.
Aos 63 anos, "quando já não se es- pera nada", encontrou "o que faltava para passar a ter tudo" - Pilar. Jornalista, Pilar chegara
de Sevilha a Lisboa para fazer o percurso de Ricardo Reis, tal como descrito magistralmente pelo escritor, em O Ano da Morte de
Ricardo Reis.
O café que tomaram em Lisboa e um novo encontro meses depois em Sevilha - por iniciativa de Saramago, que viajou de camioneta até
lá - mudou a vida a ambos. Casaram em Lisboa, em Outubro de 1988. Ele em vésperas de fazer 66 anos, ela com 36; ambos com um
casamento oficial anterior.
Nunca mais deixaram de andar jun- tos. "Se tivesse morrido aos 63 anos, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que serei
quando chegar a minha hora", disse Saramago um dia, numa das várias muito belas declarações públicas de amor a Pilar.
A intensa ligação a Pilar (chegará a chamar-lhe, numa entrevista na Antena 2, o seu outro Prémio Nobel) levá-lo-á a apagar das
reedições dos livros publicados até 1984 as dedicatórias a Isabel da Nóbrega: "À Isabel, sempre", em Levantado do Chão (também
dedicado a 16 elementos da União Cooperativa de Produção Boa Esperança, do Lavre, Montemor-o- Novo, que o acolheram e sem os quais,
escreveu, "não teria sido escrito" o livro, mas cujos nomes foram igualmente suprimidos, ficando apenas, em edição posterior, "À
memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados"); "À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e
renova", em Memorial do Convento; e "À Isabel, outro livro, o mesmo sinal", em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Os adversários não lhe perdoaram a atitude. Amigos que muito o apreciam lamentaram-na profundamente.
Andaluza, a mais velha de 15 irmãos, Pilar é a tradutora para espanhol dos livros do marido - trabalho que fazia quase em
simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como jornalista, acima de tudo. Manteve uma rubrica de intervenção
cívica, durante anos, na rádio. Pôs-lhe o nome de Blimunda não se rende.
Entre as incumbências que competem a uma viúva, deverá agora (sugeriu Saramago numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos, seu
amigo de longa data) organizar, "para publicar", juntando-os à obra já feita, "um ou dois" volumes com cartas de leitores, algumas
delas "absolutamente extraordinárias, documentos humanos de uma profundidade, uma beleza e emoção raras", que foram chegando "de
toda a parte" ao escritor.
Provocador de ideias
Sem temer ficar isolado no debate, Saramago lançava no espaço público ideias fracturantes, quase sempre contra a corrente ou mesmo
politicamente incorrectas - o voto em branco, a fusão de Portugal em Espanha, a irrelevância do 25 de Abril para atingir a
democracia, a semelhança da ocupação israelita da Palestina com Auschwitz, a provocação a "deus, esse a quem chamamos senhor" e a
quem "uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para [...] condenar sem remissão".
Fazia-o de uma forma que surpreendia o leitor/ouvinte incauto: tirando das premissas as conclusões menos conformes com os cânones.
O seu era - disse um dia numa entrevista na Antena 1 ao autor deste obituário - "o ponto de vista do galinheiro". Referia-se aos
tempos da juventude em que frequentou intensamente o Teatro Nacional de São Carlos, cujos espectáculos via, grátis, mercê da
bondade de um porteiro amigo do pai. Longe e de cima (mesmo acima do "pó dos lustres" do magnífico teatro barroco), era-lhe dado
ver e ouvir os espectáculos de ângulos diferentes dos que os viam da plateia ou dos camarotes, explicou.
Talvez por isso, prevalecia nele a distância do cepticismo: "Tenho sempre um pé atrás [porque sei que] nada é definitivo e que o
motivo do riso de hoje pode amanhã tornar-se em lágrimas."
Dotado de uma grande facilidade de expressão apesar da leve gaguez com que falava, deixou, além dos livros e das conferências, um
extraordinário acervo de declarações em entrevistas.
Nelas podemos acompanhar e em certos casos completar, dito por outras palavras, normalmente mais directas, o essencial das
preocupações e interrogações que foi semeando na obra literária.
Sobre a democracia, a criação literária, o papel do escritor, o jornalismo, Portugal, o mundo, Deus.
E sobre este mesmo acontecimento que aqui relatamos e em que é protagonista - o seu desaparecimento da terra e a perspectiva de uma
outra vida, para lá da morte: "A finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia, apaga-se". com Raquel Ribeiro
Fontes principais: Jornal de Letras, 26/3/1997; Visão, 16/1/2003; Público 3/4/2004, 12/11/2005, 16/1/2006, 7/11/2008, entre outros;
e Uma longa viagem com José Saramago, João Céu e Silva, Porto Editora, 2009; várias entrevistas à Antena 1 e à Antena 2.
Cronologia
Um percurso polémico
1975
Saramago é nomeado director adjunto do DN. Ao entrar, anunciou aos jornalistas: "Quem não está com a Revolução, é melhor não estar
no DN". Em tempo de opções radicalizadas, os editoriais vinham ao serviço da facção gonçalvista do MFA. O saneamento de 30
jornalistas colou ao seu nome um rasto de polémica que o acompanhou sempre.
1989
É o primeiro das quatro centenas de subscritores de um documento, designado Terceira Via, que contestava a direcção de Álvaro
Cunhal e exigia "maior democracia interna" no PCP.
Novembro de 1991
A publicação de Evangelho Segundo Jesus Cristo é recebida com polémica em Portugal e no Brasil, com a Igreja deste país a dizer que
se o escritor fizesse parte da Igreja Católica seria excomungado.
Abril de 1992
O subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, exclui Evangelho da lista de candidatos ao Prémio Literário Europeu. "O livro não
representa Portugal nem os portugueses", justifica. Saramago comenta: "É o regresso da Inquisição." Em 1993, Saramago decide
abandonar o país para fixar residência na ilha de Lanzarote, em Espanha.
27 de Fevereiro de 1999
Num colóquio em Lisboa sobre os 25 anos do 25 de Abril, diz acreditar que se a Revolução não tivesse sido feita, Portugal estaria
igual ao que é hoje. "O 25 de Abril acabou. É história. É uma promessa que não se realizou". "(...) Não quer dizer que não o
devêssemos ter feito. Apenas que não soubemos, não pudemos ou não nos deixaram mantê-lo."
Agosto de 1999
Recusa o honoris causa da Universidade de Belém do Pará, em sinal de protesto contra o modo como decorre o julgamento do massacre
ocorrido na povoação de Eldorado dos Carajás, a 17 de Abril de 1996: 155 soldados da polícia militarizada abriram fogo contra uma
manifestação de camponeses tendo provocado 19 mortos.
18 de Setembro de 2001
Uma semana após o 11 de Setembro, num artigo editado simultaneamente no PÚBLICO e no El País (O Factor Deus), cita exemplos de
violência ocorrida em países como Índia, Angola e Israel, supostamente por motivos religiosos, para expressar a sua ideia de que
"as religiões, todas elas, sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e
continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais".
24 de Janeiro de 2002
Em visita a Ramallah, Saramago compara a ocupação israelita dos territórios palestinianos ao campo de concentração nazi de
Auschwitz. "É preciso dizer que o que acontece na Palestina é um crime que nós podemos parar. Podemos compará-lo ao que aconteceu
em Auschwitz".
14 de Abril de 2003
Depois de por várias vezes se ter manifestado um acérrimo defensor da revolução cubana, critica o regime de Fidel, agastado com a
execução de três dos autores do desvio de um ferry. Num artigo de opinião no El País, diz: "Até aqui cheguei. De agora em diante,
Cuba seguirá o seu caminho, eu fico."
15 de Julho de 2007
Em entrevista ao DN, defende que os portugueses só tinham a ganhar se Portugal fosse integrado na Espanha. "Não vale a pena
armar-me em profeta, mas acho que acabaremos por integrar-nos". (...) Seria mais uma província. "Já temos a Andaluzia, a Catalunha,
o País Basco, a Galiza, Castilla la Mancha e tínhamos Portugal. Provavelmente [Espanha] teria de mudar de nome e passar a chamar-se
Ibéria".
18 de Outubro de 2009
Na Biblioteca Municipal de Penafiel, no lançamento mundial de Caim, Saramago refere-se à Bíblia como "um manual de maus costumes,
um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana". Mas diz o mesmo sobre o Corão. "Imaginar que Corão e Bíblia são de
inspiração divina? Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus, que lhes dizia ao
ouvido o que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos."
Fevereiro de 2010
Quando é noticiado que, no programa da visita do Papa Bento XVI a Portugal, haveria um encontro com personalidades da cultura
portuguesa, Saramago anuncia que recusaria um eventual convite para a ocasião. "Não temos nada para dizer um ao outro", justificou.
S.C.A
Ele inventou um Portugal em Lanzarote
Alexandra Lucas Coelho
O Nobel que escolheu viver fora de Portugal foi um patriota à sua maneira. É o que defendem tanto Eduardo Lourenço como o
ex-ministro espanhol da Cultura, César António Molina
Saramago saiu de Portugal mas talvez nunca tenha deixado Portugal. E quando ontem se tratou de decidir, Portugal ou Espanha, foi
Portugal, definitivamente.
O corpo do escritor chega hoje, às 12h30, ao aeroporto de Figo Maduro, segue para o Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa, onde
ficará em câmara ardente até amanhã por volta das 12h, será depois cremado no Cemitério do Alto de São João, e as cinzas ficarão em
Portugal.
"O que Pilar del Rio me disse é que as cinzas ficarão cá", disse ao PÚBLICO José Sucena, o administrador da Fundação José Saramago.
Em 2008, o escritor manifestou a vontade de que as cinzas fossem colocadas sem qualquer inscrição no seu jardim de Lanzarote. "Ele
terá tido razões para alterar essa manifestação de vontade", explicou ontem José Sucena. "Por razões que não gostaria de revelar,
ele expressa e livremente mudou de opinião."
Só ao fim da tarde de ontem se tornou claro qual seria o destino final de Saramago. O corpo permaneceu em câmara ardente em Tías,
Lanzarote, enquanto em Lisboa o Ministério da Cultura anunciava ter fretado um C130 para ir buscá-lo logo que os trâmites
burocráticos o permitissem. Depois foi anunciado que o corpo viria para Lisboa hoje e ficaria em câmara ardente, mas tudo o mais
continuou em aberto: se Saramago seria enterrado ou cremado, e para onde iriam os seus restos finais. Chegou a pôr-se a hipótese de
as cinzas serem divididas entre Azinhaga do Ribatejo, a terra natal do escritor, e Lanzarote, a ilha espanhola onde escolheu viver
com Pilar del Rio.
Portugal em Lanzarote
"Nunca pensei noutra coisa, nunca, nunca", reagiu Eduardo Lourenço, ao saber que o corpo de José Saramago seria cremado em Lisboa e
as cinzas ficariam em Portugal. "Porque o conheço e sei que é um autor português ligado a esta terra de uma maneira visceral. É um
homem da terra, desta terra. Não cosmopolita, porque não é o seu género, e não patriota num sentido banal. Ele inventou a pátria de
que precisava para respirar e para existir, como todos nós."
Desde que o autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo deixou Portugal - na sequência de um gesto censório de Sousa Lara, um
sub-secretário de Estado da Cultura cujo nome a cultura portuguesa, de outra forma, hoje teria dificuldade em lembrar -, a relação
do país com Saramago e de Saramago com o país alimentou centenas de páginas, até se reflectir na incógnita depois da morte.
E não terão os portugueses cobrado, ao longo dos anos, o facto do mais traduzido e premiado escritor vivo português viver fora?
"Alguns cobraram, mas acho que não", diz Eduardo Lourenço. "Além de ser o escritor que é, tornou-se um ícone cultural português.
Portugal ficou com o Prémio Nobel por conta de Saramago e vice-versa. Sabemos todos que há gente que não concorda com as ideias
dele. Mas quando recebeu o Nobel fez a unanimidade que se pode ter neste país."
E, na visão de Lourenço, qual terá sido a razão decisiva que manteve Saramago fora de Portugal? "Excesso de susceptibilidade e
também, perante uma pessoa que teve aquele gesto [Sousa Lara], um protesto, sendo que Saramago não era homem para arrependimentos.
Depois também tinha uma relação especial com a Espanha. Já não estamos na época de nacionalismos como o século XIX o concebeu. Ele
procurou um sítio que fosse dele. Lanzarote era um bocado de Portugal."
E ele para Lanzarote era tanto que os responsáveis políticos da ilha decidiram decretar um luto de três dias. Mais um dia do que o
luto decretado pelo governo português para hoje e amanhã.
"Em Portugal houve um passado de pouca aceitação na primeira parte da vida dele, mas penso que não há verdadeiro contencioso entre
Saramago e Portugal", atalha Eduardo Lourenço. "E era das pessoas que conheço que conhecia melhor Portugal. Simplesmente, o que fez
foi reiventar um outro passado, primeiro para Portugal, depois para a Península Ibérica, e depois para o mundo.
Patriota é o que critica
César António Molina, escritor e ex-ministro espanhol da Cultura, conheceu Saramago ao longo de 30 anos. Quando ontem se confirmou
a cremação ficou desapontado. "Creio que o corpo de um grande artista deveria conservar-se. Creio que o corpo de Saramago deveria
ser enterrado nos Jerónimos, com outros grandes de Portugal. Tem tal altura e importância, apesar de ainda não termos tido
distância para nos darmos conta da sua dimensão."
E sendo um escritor português, em Espanha coloca-se a hipótese de ser também visto como um escritor espanhol? "Não. Ele é um
escritor português em língua portuguesa, que amou e entendeu muito bem Espanha. Mas é um escritor português, porque a língua é a
identidade. Ele não escreveu em espanhol. É uma pessoa que viveu em Espanha, e a quem os espanhóis querem como compatriota, mas
respeitamos a sua identidade, que era portuguesa."
E a questão do patriotismo nem se coloca, defende Molina. "Um grande escritor espanhol, Mariano José de Larra, dizia que o
verdadeiro patriota é aquele que critica o seu país e não o que trata de ocultar os seus defeitos, porque quer que esse defeitos
sejam corrigidos. Saramago foi um grande patriota, evidentemente criticando aspectos, mas na crença de que ajudava o país. Mas
provavelmente sentia que havia gente em Portugal que interpretava mal o seu pensamento de forma deliberada."
Depoimento
Melancolia e raiva na escrita de um português que se pareceu com Quixote
Juan Cruz, Lanzarote
Nas últimas semanas, José Saramago mal falava, mas ria, continuava a rir. Pilar del Rio, a sua mulher, com quem conviveu mais de 20
anos, continuava a preparar-lhe jantares e pequenos-almoços, e embora a comida parecesse ser de outro mundo ou de outras
necessidades, ele estava em todos os ritos que ela preparava para que continuasse ligado ao fio da sobrevivência.
Estava e não estava, mas ria. Ontem [quinta-feira] amanheceu melhor, como se ressurgisse, e conversou com Pilar, com o médico, como
se se despedisse da vida e das pessoas que o acompanharam até ao fim. Às vezes - aconteceu quando estivemos pela última vez com
eles, há uma semana, na sua casa de Tías, Lanzarote - só ouvia música, que Pilar escolhia com o cuidado com que tratou até ao
último detalhe (e até ao fim) da felicidade do marido [...].
Lanzarote deu-lhe muita felicidade, desde que Pilar ali o levou pela primeira vez em 1993, um ano depois de ali morrer um herói
cujo esteiro ele prolongou, César Manrique, outro Quixote, neste caso insular, que tinha abraçado causas que sempre foram
familiares a Saramago: o respeito aos homens e à terra, a luta contra a injustiça dos homens contra os homens. De forma
intermitente, viveu em Lanzarote (onde se curou de um desengano, o do seu país, que o impediu de concorrer a um prémio
internacional com o seu Evangelho segundo Jesus Cristo) e continuou a viver em Lisboa, que guardava o mais central do seu coração:
o amor aos outros e o amor aos seus antepassados. O seu avô, analfabeto, ensinou-lhe a amar os homens e a terra, e a ele dedicou
num discurso memorável o prémio Nobel [...].
Esse carácter português e quixotesco levou-o à garupa de todas as causas civis do seu tempo: comunista convicto, jornalista contra
a ditadura e a favor da mudança dos cravos em Portugal, foi em todos os países que visitou (do Brasil ao México, de Espanha a
Israel ou Palestina) um firme defensor dos direitos humanos, contra as guerras (a do Iraque nos últimos anos), contra o esmagamento
(de Israel sobre a Palestina), a favor de aquelas pessoas (como Baltasar Garzón) assediadas por defenderem o que ele mesmo
defendeu, a memória civil dos perdedores.
Sempre com essa filosofia espartana com que comparecia aos actos, nas apresentações e nos múltiplos aeroportos que frequentou, como
se a honra e a glória fossem penugem no casaco. Foi uma hospedeira de Frankfurt que o informou de que ganhara o Nobel, quando já
abandonava a Feira do Livro, uma quinta-feira de Outubro de 1998. Então sentiu-se só, "à minha volta não havia nada, ninguém, nada,
ninguém, nada", e começou a caminhar sem rumo até encontrar a sua editora Isabel de Polanco a quem comunicou a notícia. Esse
abraço, que durante anos foi marca da relação que mantiveram, adquire hoje o aroma triste da melancolia, porque os dois
protagonistas deste bonito episódio simples morreram.
Há uma semana, Pilar del Rio disse-me a mim e a Francisco Cuadrado, o seu editor de Santillana, que uma dessas manhãs o seu marido
se levantara com vontade de escrever outra vez, de retomar o fio de uma das suas histórias em que estava enfrascado quando a
gravidade do seu estado fez com que perdera a voz mas não o riso. Pilar aconselhou-o a esperar, e ela mesmo esperava que o milagre
de dois anos antes amanhecesse outra vez no cenário discreto da vida de Saramago, que o autor das Intermitências da Morte voltasse
outra vez a ocupar o seu sítio preferido da casa, a biblioteca da Fundação, sob os cristais da luz que também foi o ar de Manrique.
Mas já só o animavam as piadas de Pilar, a persistência dela em continuar os hábitos da vida diária, o pão com azeite, as verduras,
o arroz, o bacalhau português, os peixes, a carne, a vida viva que Saramago sempre quis.
Já havia pouco para dizer, depois de ter dito tanto, depois de tanto sonho e de tanta escrita. Fomos vê-lo onde esperava as imagens
da televisão e, sem dúvida, o sonho que já pouco se interrompia. Então dissemos-lhe adeus, até amanhã, e ele disse, acariciando com
as suas mãos já transparentes, grandes mas simples:
"Até amanhã".
Juan Cruz é jornalista do El País e foi editor de Saramago
Elogio ao escritor
Igreja enaltece "grande criador da língua portuguesa"
António Marujo
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), da Igreja Católica, divulgou ontem um comunicado no qual manifesta "o seu
pesar na morte de José Saramago, grande criador da língua portuguesa e expoente da nossa cultura".
Ao mesmo tempo, o texto refere que "o cristianismo e o texto bíblico interessaram muito ao autor como objecto para a sua livre
recriação literária" e que nessa "exigência e beleza" há uma "aproximação" que o SNPC sublinha. Mas o secretariado católico lamenta
"que ela nem sempre fosse levada mais longe, e de forma mais desprendida de balizamentos ideológicos".
Na apresentação do seu último livro, Caim, Saramago afirmara que a Bíblia "tem coisas admiráveis do ponto de vista literário" e
"muita coisa que vale a pena ler". O escritor referiu concretamente o livro dos Salmos, com páginas "belíssimas", o Cântico dos
Cânticos, ou a parábola do semeador contada por Jesus; e admitiu que muitos dos valores que tinha interiorizados são "valores
cristãos". Dias antes, também a propósito de Caim, afirmara que a Bíblia era um "manual de maus costumes".
Num DVD gravado pelo músico catalão Jordi Savall, em que é tocada a peça de Joseph Haydn As Sete Últimas Palavras de Cristo na
Cruz, Saramago faz comentários a cada um dos capítulos, em que coloca várias questões de índole pessoal sobre a existência de Deus.
Na apresentação de Caim, comparando a sua obra e a Bíblia, Saramago acrescentava: "A Bíblia é um livro sagrado e, que eu saiba,
nenhum dos meus romances é sagrado. A Bíblia tem coisas admiráveis do ponto de vista literário.". Entre elas, estavam os Salmos, o
Cântico dos Cânticos, o Pentateuco e o Novo Testamento.
Saramago confessava ainda sentir-se espicaçado pela Bíblia, cujo texto integra o seu património cultural, ao contrário do Alcorão,
que não irá merecer a sua atenção literária. A temática religiosa está presente na sua obra, em títulos como O Evangelho Segundo
Jesus Cristo, In Nomine Dei ou A Segunda Vida de Francisco de Assis.
No documento do SNPC, a estrutura da Igreja Católica acrescenta que Saramago "ampliou o inestimável património que a literatura
representa, capaz de espelhar profundamente a condição humana nas suas buscas, incertezas e vislumbres". "Mas a vivacidade do
debate que a sua importante obra instaura em nada diminui o dever da cordialidade de um encontro cultural que, acreditamos, só pode
ser gerado na abertura e na diferença", conclui o texto.Igreja lamenta "balizamentos ideológicos" de José Saramago, mas considera-o
um "expoente da nossa cultura"
As obras essenciaisAs obras essenciais
Levantado do Chão (1980)
É considerado um dos romances fundamentais de Saramago. A epopeia dos trabalhadores alentejanos, a elucidação da reforma agrária, a
narrativa dos casos, conhecidos ou não, que fizeram do Alentejo um mar seco de carências, privações, torturas, sangue e uma
impossibilidade de viver?, escreveu Alzira Seixo.
Memorial do Convento (1982)
Certamente o mais celebrado, estudado e discutido dos seus romances, diz Carlos Reis. Um romance histórico inovador no contexto da
literatura mundial?, escreveu José Luís Peixoto. A ópera Blimunda com música do italiano Azio Corghi tem por base este romance.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
Cada vez mais o meu romance preferido, do conjunto da obra saramaguiana?, diz Carlos Reis. Um labirinto construído sobre outro
labirinto, a forma brilhante, brilhante como a ficção se aproxima de um tempo real, escreveu José Luís Peixoto. Um romance onde
elabora conjecturas fecundas para a compreensão de uma época ou de uma figura?, afirma Alzira Seixo.
História do Cerco de Lisboa (1989)
Um dos enredos mais bem imaginados da literatura portuguesa?, escreveu José Luís Peixoto no JL?.
O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
O livro contém uma história que todos conhecemos. E contém cenas e afirmações que há alguns anos atrás teriam lançado o autor na
fogueira, sem direito a sepulcro. O escritor toma para si liberdades que são a substância da criação, e comporta-se, na invenção do
seu mundo, como Deus. Este é o evangelho segundo Saramago...? escreveu Clara Ferreira Alves. O romance foi cortado da lista dos
concorrentes ao Prémio Literário Europeu, pelo então subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara.
Ensaio sobre A Cegueira (1995)
Quase em ritmo e registo de ficção científica, mantém, na escrita de Saramago e na sua aventura romanesca, uma dimensão rara e
singular na actual literatura portuguesa: a constante demanda de um laço que prenda o romance à arte de questionar e que, daí,
exija o lugar de uma ética mais profunda que a própria arte de pensar. Como se o romance fosse, e nunca tivesse deixado de ser, uma
interrogação sobre o mundo como ele é e como ele devia ser, escreveu Francisco José Viegas. Ensaio sobre a Cegueira, de alguma
forma representou o início de uma nova fase na obra de Saramago. E, decerto não por acaso, foi depois dele que se passou a falar
ainda mais da grande possibilidade de, com inteira justiça, lhe ser atribuído o Nobel, escreveu no JL José Carlos de Vasconcelos.
Foi adaptado ao cinema por Fernando Meirelles.
As Intermitências da Morte (2005)
São livros como este que nos tocam fundo, nos desarmam e nos deixam sem resposta. Apenas sabemos que na morte e no seu compromisso
para com a humanidade reside o medo atávico do desconhecido, do vazio, algures numa hora e num lugar dentro de nós, escreveu Luísa
Mellid-Franco.
Poesía Completa (2005)
Uma edição bilingue saída em Espanha essencial na sua obra para José Manuel Mendes, da Associação Portuguesa de Escritores. Quem a
ler perceberá porquê, diz.
A Viagem do Elefante (2008)
"A "maldição Nobel" já muitas vezes tem bloqueado criativamente os premiados, impedindo que voltem a escrever obras relevantes.
Saramago ganhou o Nobel há dez anos, e há dez anos que não escrevia um grande livro. Dos quatro romances publicados desde 1998,
três eram medianos e um, A Caverna, francamente pavoroso. A maldição é agora quebrada com A Viagem do Elefante, um belo romance de
Saramago que, aliás, não se parece com nenhum outro romance de Saramago. Na verdade, trata-se de um texto leve, quase jubiloso e de
leitura francamente agradável (o que não é o adjectivo saramaguiano mais evidente)", escreveu o crítico literário Pedro Mexia.
Caim (2009)
"Este livro agarra-nos, digo-o porque o li, sacode-nos, faz-nos pensar: aposto que quando o terminardes, quando fizerdes o gesto de
o fechar sobre os joelhos, olhareis o infinito, ou cada qual o seu próprio interior, soltareis um uff que vos sairá da alma, e
então uma boa reflexão pessoal começará, a que mais tarde se seguirão conversas, discussões, posicionamentos", escreveu Pilar del
Río no site da Fundação Saramago na altura em que foi lançado o romance. Caim "desafia-nos a reflectir sobre as outras versões das
histórias que nos contam", diz a professora universitária Ana Paula Arnaut.
Como foram os dias entre a chegada e a recepção do Prémio Nobel
Caderno de Estocolmo, 1998
Alexandra Lucas Coelho
O Nobel são vários dias até chegar ao rei. Saramago numa cidade de neve e Natal, com o mundo a olhar para ele
5 de Dezembro
José Saramago aterra de noite e com neve. Já conhece Estocolmo, veio há 14 anos, com Memorial do Convento, voltou várias vezes, mas
agora tem o mundo a olhar, logo à saída do avião. Conferência de imprensa no aeroporto. Check in no Grand Hotel depois do check
outde Yasser Arafat. Vista para o Castelo do Rei e para o Báltico. Na mala, 15 páginas escritas em Lanzarote.
6 de Dezembro
A seguir ao pequeno-almoço, Saramago sai a pé com frio abaixo de zero, sem luvas, cachecol nem chapéu. Está com 76 anos, e bem
disposto. Anda como um atleta. A TV sueca quer gravar uma entrevista-passeio num antigo bairro de pescadores, agora de artistas.
Ele espreita, pergunta, cumprimenta, com neve até aos tornozelos. Dá boleia a jornalistas na limusina em que o transportam. Pelo
caminho, vê pirâmides com bonecos, gente a atirar bolas e árvores de Natal por toda a parte. Estocolmo parece uma cidade enfeitada
para crianças.
O vespertino sueco Folha da Tardechama-lhe "o novo herói de Portugal". Os tradutores suecos convidam-no para almoçar. Ao fim da
tarde, encontro com outros Nobel, incluindo o indiano Amartya Sen, depois jantar com o embaixador (e romancista) Paulo Castilho.
O barman do hotel, português, inventa um cocktail anticlericalde homenagem a Saramago.
7 de Dezembro
O palácio da Real Academia Sueca está cheio. Lá fora continua a nevar e é noite escura às 17h30. Hora da Conferência Nobel. De pé
num estrado, entre estátuas e lustres, com Pilar del Rio à frente, o escritor nascido na Azinhaga do Ribatejo lê as 15 páginas que
trouxe. Conta como andou descalço até aos 14 anos, e ajudava a avó Josefa a tratar do gado e o avô Jerónimo, pastor, que lhe
contava histórias de assombrar, quando nas noites de Verão dormiam debaixo da figueira, um avô "capaz de pôr o universo em
movimento apenas com duas palavras". Treme-lhe a voz, antes de passar para as personagens que criou, tanto quanto diz elas o
criaram a ele, livro a livro.
Viagem pela infância e pela literatura, ainda e sempre marcando a sua visão política do mundo, e do estado do mundo, o discurso é
aplaudido de pé.
"Foi maravilhoso", diz ao PÚBLICO o mais antigo membro da Academia, Erik Lonnroth, que já ouviu 46 Nobel da Literatura nesta sala.
"Cada discurso é diferente, mas este baseou-se muito na vida do premiado."
Entre o fim do texto e o cerco de cumprimentos, há um momento só Saramago-Pilar, em que ele lhe estende a mão.
8 de Dezembro
A pergunta da manhã, durante a concorrida sessão de leitura na cidade, é: Na sua terra comem-se muitos saramagos? Porque, com letra
pequena, saramago é uma erva. Ao fim da tarde, fila de 600 convidados VIP, portugueses e suecos, para a festa organizada pelo ICEP
no Grand Hotel.
Antes, a ministra sueca da Cultura recebera Saramago e Pilar com frutas tropicais e champanhe. Agora, quase atropelada pela
multidão em volta do Nobel, diz ao PÚBLICO: "É como se fosse o Mick Jagger!" Há uma instalação da arquitecta Luísa Pacheco Miranda,
cinco painéis com imagens, texto invertido e espelhos.
Pilar anda de leque numa mão e Saramago na outra. Tanta gente faz muito calor. Até à ceia, ainda uma projecção de fotografias de
João Francisco Vilhena ao som de Glass, Mozart e Gesualdo e sonatas de Seixas e Scarlatti tocadas pela cravista Ana Mafalda Castro.
9 de Dezembro
Jorge Sampaio chega a Estocolmo, vai abraçar Saramago - que está de capote alentejano - e seguem juntos para a recepção à
comunidade portuguesa oferecida pelo Presidente. "O Nobel faz os suecos repararem em nós", diz Amadeu Batel, professor radicado em
Estocolmo. Saramago critica os grandes do mundo, como fará amanhã, diante do rei.
10 de Dezembro
Este é o dia. Protocolo ao minuto. A cerimónia de entrega dos Nobel começa às 16h30 e a vez de Saramago está prevista para as
17h16. Dentro da Sala de Concertos de Estocolmo, 1800 convidados. Lá fora 100 refugiados iranianos com tochas e cartazes.
Aproveitam o acontecimento e ser Dia dos Direitos Humanos. É o que Saramago fará nos dois minutos a que tem direito, duas folhas de
papel.
Petiscos, brindes, músicas, discursos, e então o Nobel português: "Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os
governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aqueles que efectivamente governam o
mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não-democrático, reduziu a quase nada o que ainda
restava de ideal da democracia."
E depois o apelo: "Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos,
reivindiquemos também o dever dos nossos deveres."
Os sapatos de verniz de Saramago pisam o grande N na alcatifa do palco e o rei Karl Gustav dá-lhe dois embrulhos, um preto e um
vermelho, medalha e diploma. Saramago estende a mão, tocam trombetas, 1800 pessoas vestidas de gala levantam-se para a maior ovação
da noite.
O português não se esquece das três vénias protocolares (para o rei, para a Academia e para a assistência) e faz umencoreantes de
se sentar porque ainda há palmas.
Potenciais Nobel
Outros escritores portugueses nomeados
Eugénio de Castro, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguel Torga, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, Sophia de Mello Breyner
Andresen são alguns dos autores que se sabe terem integrado a lista de candidatos ao Nobel da Literatura. São nomeados pelos
membros da Academia Sueca e de outras similares, professores de Literatura, ex-laureados e os presidentes de organizações de
escritores representativas da produção literária de cada país. Instituições portuguesas como a Associação Portuguesa de Escritores,
o P.E.N. Clube e a Academia das Ciências são ouvidas pela Academia Sueca e pronunciam-se a título individual. Isabel Coutinho
O escritor que revolucionou com a sua escrita
Isabel Coutinho
O que é que a sua escrita tem de especial? Muito e a opinião dos académicos estudiosos da obra do Prémio Nobel da Literatura
português é unânime
José Saramago subverteu o cânone, a norma: pôs tudo em estado de desordem, revolucionou. Basta ler um excerto de O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, romance publicado em 1991, para se notar a maneira peculiar como o Prémio Nobel da Literatura português usou
a pontuação na sua escrita.
"A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não
estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e
depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha
beleza, Conheço-te na beleza desta hora."
Peculiar porquê? Porque é usada de uma forma não canónica (apesar de o autor fazer parte do cânone literário): falta no texto o
travessão para identificar o interlocutor no diálogo e o início das falas de cada personagem é assinalado por uma capitular. Também
aqui se vê a frase característica da escrita de Saramago, uma frase quase sem pontos finais e cadenciada na pausa das vírgulas.
Não foi só nisto que o autor de Caim surpreendeu. O modo como "perturbou a tradição do romance histórico", diz o ensaísta Manuel
Gusmão, ou fez "a inscrição da História na ficção", nas palavras do professor Carlos Reis é também inovador. Tinha uma
"extraordinária capacidade" para descobrir "sentidos novos e temas por inventar" numa ficção e num teatro que se tornaram
referências canónicas da nossa literatura.
E ao mesmo tempo, Saramago chamou a História à nossa atenção e deu-lhe uma nova leitura. "Em AViagem do Elefante, Saramago retorna
a algo que estava adormecido na sua obra", diz o professor Carlos Reis que fala da sua "capacidade para pegar num episódio
histórico e dar dele uma visão muito peculiar". Por sua vez, em Caim, continua o académico, o imaginário remete para O Evangelho
segundo Jesus Cristo e para o imaginário bíblico em geral, que ali é subvertido pela visão interpretativa que Saramago coloca nas
suas obras. "Saramago apropria-se da nossa história laica ou religiosa, como acontece em Caim e essa maneira de recuperar o nosso
património histórico é muito interessante", acrescenta a especialista Ana Paula Arnaut.
O Nobel português, na sua obra, inventa factos, mistura o maravilhoso com o empírico, o conhecimento do presente com o
reconhecimento ou novas versões do passado, diz, por seu lado, Manuel Gusmão. O modo como "joga ironicamente a ficção contra o
relato histórico" e "mostra como uma tradição e história dos pobres, dos explorados, oprimidos e vencidos se pode construir contra
a história dos vencedores" também o distingue. Para a professora catedrática Maria Alzira Seixo, a sua inovação no romance consegue
ser ao mesmo tempo "erudita e popular". É erudita porque "tem bases historiográficas sólidas", quer nos livros sobre eventos do
passado quer nos romances onde procedeu a investigações pessoais ou onde elabora conjecturas para a compreensão de uma época ou de
uma figura. E é popular "pois inventa uma expressão oralizada, que tem a ver com o saber tradicional comunitário (como em Levantado
do Chão), criando a sua frase característica, quase sem pontos finais e cadenciada na pausa das vírgulas", explica.
Era como narrador oral que Saramago se via quando escrevia e inovou na maneira como utilizava o ponto final e a vírgula (ele
chamava-lhe "os sinais de pausa") dando à frase um outro ritmo dado pela oralidade. O escritor "usa pontuação, mas reinventa-a de
acordo com um outro ritmo prosódico, que é o da oralidade de quem fala a língua", afirma Carlos Reis e redescobre sentidos ocultos
nas palavras. É inovador o tipo de frase que veio a caracterizar o escritor onde se pode "encontrar o narrador a dialogar com uma
ou mais personagens, ou duas personagens que dialogam", diz Manuel Gusmão.
Tudo terá começado no "ensaio de romance" Manual de Pintura e Caligrafia, publicado em 1997. Nessa obra o autor já ensaiava a sua
técnica de construção romanesca e nunca mais a abandonará. Todos os seus futuros romances estão contidos em Manual de Pintura e
Caligrafia tal como todos os seus grandes temas futuros estão lá: o "ateísmo confesso", o "papel de primordial importância
concedido à mulher" até ao carácter humanista e humanitário que se prolonga pela sua obra, diz Ana Paula Arnaut. E nas últimas
obras, As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante e Caim volta a haver uma nova mudança. "Surge um tom marcadamente cómico
que se sobrepõe à seriedade que caracterizava os romances anteriores", afirma a professora universitária.
Quando lhe perguntámos se aquilo que Saramago fez em termos estilísticos já tinha sido feito, responde que às vezes a questão não é
se já foi feito, é a intensidade com que é utilizado que dá essa coisa nova. "Não é uma coisa nova mas de uma maneira nova",
conclui.
Esta é uma nova versão do texto Saramago: o escritor que brinca com a pontuação publicado no suplemento P2, de 23 de Abril de 2008
Destino das páginas nas mãos de Pilar del Rio
Saramago deixa inéditas "20 ou 30 páginas" do que seria um romance sobre a guerra
O editor Zeferino Coelho leu "20 ou 30 páginas" que José Saramago deixou inéditas, do que seria o seu próximo romance. "Existe um
livro, que ele estava a escrever e não terminou, nem chegou a dar-lhe título", disse o responsável da Caminho ao PÚBLICO, ontem à
noite. "Admito que existam mais algumas páginas, mas não muito mais." Não se trata, pois, de um inédito a publicar como livro
autónomo. "A Pilar del Rio pensará o que fazer com ele, entre outros textos que tenha para lá. É uma decisão que estará sujeita ao
critério dela."
De que tratavam as páginas que Zeferino teve oportunidade de ler? "Era um romance sobre a violência da guerra, de todas as guerras.
Das conversas que tivemos, creio que ele pretendia abordar a responsabilidade de todos perante este fenómeno brutal." Saramago terá
começado a escrever o livro no começo do ano, sempre ao computador. "Achei uma coisa muito depurada, e disse-lhe isso, que era do
melhor Saramago. O que li era uma espécie de introdução em que começam a sair as personagens. Pareceu-me que seria um romance como
o Ensaio Sobre a Cegueira ou o Ensaio Sobre a Lucidez.
Zeferino Coelho é o editor em Portugal de Saramago desde 1979, quando publicou a peça de teatro A Noite, uma relação que ao longo
das décadas se transformou numa sólida amizade.
Sabe-se que na "arca" de Saramago há outros textos de uma fase muito anterior nunca publicados, nomeadamente Clarabóia, o livro que
sucedeu ao seu livro de estreia de 1947, Terras do Pecado. O título original de Terras do Pecado era Viúva e foi alterado por
imposição do editor da altura, a Minerva. Saramago desvaloriza este livro, que nunca incluiu na sua bibliografia, indicando como um
dos motivos para essa exclusão a mudança forçada do título. Clarabóia foi recusado pelo editor. A.L.C.
Depoimento
Saramago faz-se ao mar
Miguel Ángel Bastenier
Não sei se entre Portugal e Espanha há algum convénio de dupla nacionalidade, como o Estado espanhol mantém com muitos países
latino-americanos. Penso que não, provavelmente devido aos receios que uma parte da opinião pública portuguesa sempre abrigou
acerca dos supostos desígnios imperialistas de Madrid. Mas isso seria quase redundante, pois não há duas nações - e atrevo-me a
dizer nações, apesar da Catalunha e do País Basco - que estejam mais próximas, que tenham mais a ver uma com a outra nem que sejam
mais indistinguíveis do que Portugal e Espanha. O hispânico é mais lusitano e o lusitano é mais hispânico do que muitos nacionais
da América Latina que fala espanhol. E, de todos os homens públicos dos dois países, ninguém simboliza melhor do que José Saramago
essa nacionalidade "portunhola", esse encontro nas margens do Douro-Duero, esse sonho nem sempre bem compreendido de Filipe II de
olhar a Península Ibérica como um todo, ou de Oliveira Martins, ao proclamar sem rodeios a Hispânia de todos, subprefeitura das
Gálias, Império Romano, que teve num personagem lendário, num "pastor lusitano", como se dizia nos meus livros de História do
liceu, um primeiro mito de toda a península - obviamente, Viriato.
O Nobel português disse há uns meses que Portugal acabaria por ser absorvido pela Espanha, o que provocou alguma comoção no nosso
irmão atlântico, ainda que se possa entender que essa fusão apenas poderia ter sentido no quadro da integração europeia. Em Espanha
a notícia foi recebida com humor, como uma boutade intelectual, ainda que, no fundo, talvez muitos espanhóis possam ter achado que
Portugal compreendia finalmente o seu "destino".
Saramago, tão "portunhol" - língua que falava na perfeição e que provavelmente preferia ao espanhol assepticamente académico -,
olhava para lá de Lisboa e de Madrid, mas isso não significava - apesar de ter empregado a expressão "absorção", talvez como
concessão à castelhanidade de base dos seus leitores espanhóis - que ignorasse as diferenças entre os dois países.
Lembro-me de um artigo que lhe pedi nos anos 90 para um suplemento internacional publicado por mais de vinte jornais - entre eles o
PÚBLICO e o El País - no qual explicava como a dureza castelhana na ortografia e orografia da palavra "Tajo", que cortava como aço
toledano, se pronunciava em português com a suavidade do "J" arrastado, que não corta mas, pelo contrário, aconchega. Essas eram as
diferenças que o autor resolvia na "portunhalidade".
Quase rematando o ano, José Saramago fez-se ao mar naquela formidável jangada da pedra na qual resumia o seu ideário: Portugal e
Espanha são uma mesma realidade diversa, têm uma entidade e identidade ibérica intensamente comum. Por isso Saramago agrada tanto
na Espanha castelhana, por isso, quando lhe pedi o artigo do Tejo, a sua colaboração apareceu como pertencendo ao contingente
"espanhol" entre as contribuições dos diferentes jornais para esse suplemento mundial. E, por isso, não tenho a mínima dúvida de
que Saramago e eu somos da mesma nacionalidade. Seja ela qual for.Jornalista
Depoimento
Sobre a morte de José Saramago
Carlos Reis
A notícia da morte chega nos momentos e nos lugares mais estranhos, mesmo que ela seja uma morte não propriamente anunciada, mas já
esperada. À porta de um hotel, em Cáceres, pouco depois da reunião de um júri que atribuiu o prémio de criação da Junta de
Extremadura a Eugenio Trías, comentávamos, Eduardo Lourenço e eu, o frágil estado de saúde de José Saramago; de repente, uma
chamada telefónica (malditos telemóveis!) deu notícia daquilo que há tempos estava para vir: a morte de José Saramago.
Com José Saramago desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal. Mas fica connosco
um universo: esse que Saramago criou, feito de uma visão subversiva da História e dos seus protagonistas, dos mitos estabelecidos e
das imagens estereotipadas. Ainda que a sua obra tenha a dimensão plurifacetada e sempre em renovação que é própria dos grandes
escritores, quero evocar, neste momento de comovida homenagem, alguns dos seus componentes mais fortes e expressivos. E assim, digo
que o romancista que em 1980 publicava Levantado do Chão - uma espécie de romance de iniciação que confirmava a aprendizagem
representada em Manual de Pintura e Caligrafia - pagava uma espécie de tributo literário ao extinto neo-realismo, com o qual o
escritor mantinha fortes laços de solidariedade ideológica e política. Mas logo depois, e na sequência do admirável Memorial do
Convento, Saramago escreve e publica, entre outros que agora não menciono, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de
Pedra (1986) e História do Cerco de Lisboa (1989).
Isto significa que Memorial do Convento não era um caso isolado, no que à inscrição da História na ficção diz respeito. E significa
também que a tematização da História desencadeava inevitavelmente um jogo de variações e de modulações temáticas. A reflexão sobre
Portugal e o seu destino (mau destino, para Saramago) de integração europeia, a problematização de mitos portugueses (o de Fernando
Pessoa, por exemplo) em articulação com um tempo histórico tão bem identificado como o dos inícios do salazarismo, a revisão
crítica e provocatória do cristianismo, a reflexão em clave ficcional sobre as origens históricas e políticas de Portugal, de novo
em incipiente "diálogo" com a Europa, são alguns dos grandes temas que a ficção saramaguiana nos legou.
Depois desta, que é a década mais fecunda da escrita literária de Saramago, abre-se um tempo de tematização de sentidos, de valores
e de temas com um alcance universal. É então sobretudo que o registo da alegoria entra decididamente na escrita literária de
Saramago; e é por isso que romances como Ensaio sobre a Cegueira ou Todos os Nomes são e serão lidos como grandes romances da
literatura universal.
Diz-se que José Saramago era um escritor polémico. É verdade. São polémicos os escritores que, com desassombro e com arrojada visão
do futuro, interpelam os homens e os poderes do seu tempo. E é justamente quando o fazem, em conjugação com o impulso inovador que
às suas obras incutem, que dizemos deles que são grandes escritores. Saramago foi e será um grande escritor. Ensaísta
Depoimento
Vénia e honra
Hélia Correia
Diz a lenda o que a história não confirma: que, no tempo em que Sófocles morreu, a Atenas que tanto o venerou e que tão venerada
foi por ele se encontrava cercada pelos espartanos. A aldeia natal do dramaturgo encontrava-se então fora de portas, inacessível
aos atenienses. O deus do teatro apareceu então nos sonhos de Lisandro, o general das tropas sitiantes. Ordenava que abrissem alas
para dar passagem ao cortejo funerário. Lisandro obedeceu sem hesitar . Todos, atenienses e espartanos, se inclinaram com vénia e
com lamento, ante o corpo do grande criador. Não consigo fazer elogios fúnebres. Digo "não" ao louvor de circunstância. Palavras e
palavras vão cair com um grande barulho neste dia e todas elas ficarão aquém da grandeza deste homem. Que houve entre nós um
luminoso afecto é coisa que me diz respeito a mim e sobre a qual não tenho que escrever. Que tenho um pensamento de triunfo é o que
eu gostaria de explicar. Porque há aqui triunfo: a plenitude de um cidadão inteiramente dedicado à sua polis e aos seus
contemporâneos. E a plenitude de um "poeta", daquele que faz obra e é por ela tornado glorioso. É o homem na sua existência
absoluta. O homem que, sabendo-se mortal e não acreditando num Além, se empenha soberbamente em viver e criar com um fulgor e com
uma coragem que os crentes desconhecem ou receiam.
Para além do meu preito pessoal, que não se há-de resumir a depoimento, eu imagino aqui uma cidade que o leva em ombros - e os
inimigos a abrirem caminho e a curvarem-se. Se os gregos inventaram esta lenda, é para que a memória a active quando um homem como
Saramago nos deixa. Escritora
Depoimento
Palavras fraternas sobre José Saramago
Urbano Tavares Rodrigues
Toda a obra literária de José Saramago é tocada pela centelha do génio, particularmente livros como Levantado do Chão, Memorial do
Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. A força das ideias mestras, a
lucidez e o humor, a originalidade de um discurso oral que interpela o leitor e mescla dialecticamente acção, diálogo e comentário
combinam-se em todos os seus livros com elementos mágicos de variada extracção, que ele muito justamente faz seus.
A sua defesa das grandes causas, mesmo para além das suas convicções comunistas, se é certo que lhe valeram alguns pequenos ódios e
perseguições, trouxeram-lhe inegavelmente grande prestígio mundial. Como personalidade ímpar é olhado e respeitado.
Amigos desde o tempo da resistência ao salazarismo fascista e ao caetanismo, criámos laços de fraternidade inesquecíveis. Nunca
olvidarei aquela folhinha dobrada que ele me metia no bolso, na redacção do Diário de Lisboa já no começo dos anos 70, dizendo-me:
"Toma lá isto." Isto era o Avante! clandestino.
Ao longo dos anos, após o 25 de Abril, partilhámos lutas, esforços tenazes, alegrias e decepções. Muitas vezes divergimos e
discutimos, dentro do partido ou cá fora, por diferente avaliação de acontecimentos ou realidades polémicas. Mas a frontalidade
dessas divergências nunca empanou nem a admiração nem o profundo afecto que lhe dedico.
Recordo, emocionado, certas pausas da nossa intensa actividade de escritores e revolucionários, nos anos em que mais convivemos, e
como a ironia de José Saramago faiscava nessas inesquecíveis conversas.
Hoje como ontem, nos lançamentos dos seus romances em Lisboa, sobre os quais quase sempre escrevi, ou a sua presença nas feiras do
livro, entre dois livros assinados, o seu sorriso cúmplice, o seu abraço rijo.
Deixo-te aqui, Zé, um incitamento: continua a olhar para cima, para o sol da razão, que iluminou sempre a tua vida e a tua escrita.
Escritor
Depoimentos
A surpresa numa espécie de segunda vida
Já há algum tempo que se esperava a notícia, embora José Saramago tenha recuperado até muito bem nos últimos tempos, numa espécie
de nova vitalidade. Mas tinha 87 anos e já tinha estado quase do outro lado. Ele teve uma espécie de segunda vida, depois daquela
quase morte de há três anos em que passou a ter um renovado sentido de humor, uma coisa que não era muito óbvia nele. E escreveu A
Viagem do Elefante, um livro também invulgar na obra dele. Foram os últimos anos de vida um bocadinho diferentes, e para mim foi
uma surpresa agradável.
O gosto de viver acentuou-se no confronto com a morte, como, aliás, penso que é relativamente natural que aconteça. A Viagem do
Elefante, que só terminou depois de ser hospitalizado, é um livro que não tem uma amargura muito comum noutros livros dele. Isso
foi uma novidade de fim de vida que apreciei bastante.
Duas características marcam o lugar dele na literatura portuguesa. É um escritor de ideias, o que não é o mais comum no âmbito da
ficção portuguesa. Os romances dele partiam sempre de uma ideia forte, alegorias sobretudo políticas e civilizacionais. É um autor
que constrói os seus romances à volta de ideias e não necessariamente de personagens ou de enredos. Há uma visão do mundo que é
muito forte.
E, por outro lado, a sua escrita era uma espécie de actualização do barroco do padre António Vieira, um autor de que ele gostava e
que tinha lido. Os famosos parágrafos corridos tinham também muito a ver com o incorporar dos diálogos e portanto com uma mistura
de uma linguagem muito literária com uma abertura à oralidade que era a abertura às personagens e às classes que não têm acesso a
outro tipo de linguagem - que falam e não escrevem.
Isso também tinha uma intenção política. Acho que ele também ficará como um autor político, o que naturalmente também tem os seus
perigos, porque os autores que ficaram ligados à política nem sempre as suas obras envelhecem bem. Não sei se será o caso de
Saramago. É um autor de que gosto muito de alguns livros e nada de outros.
Foi o primeiro português que ganhou o Nobel e provavelmente o último e desse ponto de vista esse lugar está assegurado na
literatura portuguesa.
Pedro Mexia
Subdirector da Cinemateca
e crítico literário
Depoimento recolhido telefonicamente
Humanidade unicamente humana
Em todos os sentidos, como destino e como autor, é um caso paradoxal. Aparece tarde no horizonte da ficção portuguesa, quando já
ninguém o esperava, provavelmente nem ele. E isso é já em si um paradoxo e sobretudo um milagre cultural. À sua maneira, era uma
versão nossa da Gata Borralheira.
Para imitar Saramago, também ele se levantou do chão, de um sítio sem memórias eruditas canónicas, apoiado na sua extraordinária
experiência dos homens, sonhando e ressonhando o texto que foi para ele matricial. Refiro-me à Bíblia.
Quase todos os seus livros célebres são um diálogo com a mitologia bíblica, que ele vai submeter a uma estranha desmitologização,
fazendo com ela um mundo às avessas ou antes um mundo onde as mais famosas histórias bíblicas se tornam a história mesma da
humanidade unicamente humana.
Provavelmente com a queda da utopia que foi assumidamente a dele, essa espécie de diálogo dramático com a mundovisão religiosa de
raiz bíblica foi o que o salvou, não só literariamente, do traumatismo ideológico e ético.
Deportou o essencial da sua utopia para paragens onde esse autêntico apocalipse político fosse substituído pelos sonhos de uma
humanidade que pudesse ter perdido uma guerra mas nunca a ilusão que a faz viver.
Eduardo Lourenço
Ensaísta
Empenho para que os africanos fossem visíveis
O primeiro sentimento que tenho é a generosidade para com os autores, que se manifestou com os escritores de língua portuguesa.
Antes de ganhar o Nobel, tinha a generosidade de promover e trazer para a visibilidade os escritores e a escrita dos africanos de
língua portuguesa. Não foi só comigo, mas ele ofereceu-se para fazer o lançamento e apresentou o meu primeiro livro de contos, Cada
Homem É Uma Raça, lançado aqui em 1989. Já doente, saiu da cama para apresentar Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Há uma entrega
aos outros, uma dedicação a uma causa, que não era só política, mas a causa dos que estavam longe e dos que não tinham voz. Isso
marcou-me muito: a dimensão humana dele.
Mia Couto
Escritor moçambicano
Depoimento recolhido telefonicamente
Com amizade,
Aires Alves
Contactos:
Telefone tmn: 910 937 448
E-MAIL e MSN: aires.alves@gmail.com
- SKYPE: aires.alves
Nenhum comentário:
Postar um comentário